O PRINCÍPIO DA HUMANIDADE E O TRÁFICO DE PESSOAS PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL

Grecianny Cordeiro
HUMANO, DEMASIADAMENTE HUMANO
A palavra humanidade provem do latim humanitate ou humanitas e refere-se à natureza humana, ao conjunto formado por todos os seres que integram o gênero humano.
No sentido etimológico, tal palavra é definida como “sentimento de clemência de homem para homem[1]”, de benevolência, de bondade, compaixão.[2]
E o que nos torna humanos nada mais é senão a soma de nossas características comuns a qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, a exemplo de nossa capacidade de amar e odiar, de apaixonar-se, de sofrer, de compadecer-se com o sofrimento alheio e de se solidarizar com a dor do outro. Somos a soma de nossas virtudes e defeitos, de nossos amores e dissabores, de nossas alegrias e tristezas, do bem e do mal, da verdade e da mentira.
Note-se que essas dicotomias paralelas sempre foram utilizadas pelos pensadores ocidentais para assim buscarem a essência da humanidade, bem como a compreensão das diferenças entre o mundo animal e o comportamento humano.[3]
É a posse das faculdades do espírito que define a humanidade dos seres humanos, diferindo-o dos demais animais. Para o pensamento ocidental, o conceito de humanidade importa na compreensão de um aspecto biológico, enquanto homo sapiens, e de um aspecto moral, enquanto pessoa, sob o ponto de vista axiológico. [4]
O que faz o homem humano, demasiado humano[5], como diria Nietzsche em livro de igual título, é sua possibilidade de tornar-se um espírito livre – que ainda não existia, na opinião do filósofo -, liberto de preconceitos idealistas instigados pela moral, pelas manifestações culturais, pelas valorações, pelos estigmas, pelos dogmas, etc. A desconstrução proposta por Nietzsche para que então possa o espírito ser considerado livre importa numa constante revisão da moral e da cultura, bastante pertinente nos dias atuais.
Augusto Comte, no ano de 1854, filósofo positivista, criou o termo Religião da Humanidade, objetivando assim construir um sistema religioso afastado da teologia e da metafísica[6], baseado na solidariedade e no amor entre os homens. A religião seria o cerne da humanidade.
Questões filosóficas à parte, não há como negar que a solidariedade e o amor são conceitos indissociáveis da humanidade, fundamentais à sua sobrevivência e perpetuação; outrossim, mais do que a preocupação de Nietzsche com o homem de espírito livre, nos dias hodiernos, não se pode olvidar a necessidade de assegurar-lhe sua liberdade física, moral e psicológica, a sofrer constantes ameaças e violações nos mais diversos lugares do planeta Terra.
Em pleno século XXI, após uma escalada histórica em que o homem sempre procurou superar a si mesmo, desde a época das cavernas à era da globalização, mostrando-se incansável na busca por constantes desafios, passando pelos campos da ciência, da informática, da medicina, da bioética, da engenharia e de tantas outras áreas de suma importância para a melhoria de sua qualidade de vida, atualmente, esse mesmo homem encontra-se perdido no meio do caminho entre a barbárie e a evolução plena.
Esse ser, humano, demasiadamente humano, protagonista de deslumbrantes criações artísticas no campo da música, da pintura, da escultura, da literatura, que foi à lua e envia naves espaciais tripuladas e não tripuladas ao espaço, que construiu a bomba atômica e armamentos de tecnologia de ponta, sempre ávido pelo conhecimento, incansável na luta pela concretização dos ideais da igualdade, da liberdade e da fraternidade, é o mesmo que perpetua a fome, a miséria, a guerra, a escravização do homem pelo homem, forjando por meio da dor e do sofrimento um quadro dantesco.
Foi justamente para espantar a face mais cruel do homem, após um pesado e doloroso legado de tantas guerras, de tantos massacres e morticínios, ainda existentes em países da África e do Oriente Médio, a dizimar centenas de milhares de pessoas, que Estados, organismos internacionais e nacionais, governamentais ou não, dentre tantos outros segmentos, há muito vêm se dedicando à construção e à efetiva proteção dos direitos humanos, visando uma sociedade mais justa, mais igualitária, mais democrática, e porque não dizer, em busca de um mundo melhor.
A preocupação com os direitos humanos, especialmente a nível internacional, ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, culminando com a criação da Organização das Nações Unidas – ONU, que tem como um de seus objetivos promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. Em 1948, foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos do Homem, instrumento que serviu de base para que vários países adotassem em suas Constituições muito dos princípios ali estabelecidos, considerados inalienáveis.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) assegura que: todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal (art. 3o.); ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas (art. 4o.); Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante (art. 5o.); todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei (art. 6o.); todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar (art. 8o.).
Nos modernos textos constitucionais de muitos países tidos por democráticos, esses mesmos direitos previstos na Declaração Universal dos Direitos do Homem assentes, no princípio da Humanidade e no princípio da Dignidade da Pessoa Humana, foram incorporados à ordem jurídico-constitucional, a exemplo do Brasil.
A despeito do consenso em relação à importância dos direitos humanos a nível internacional para a construção de um mundo melhor, alavancada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e por tantos outros documentos, convenções e protocolos elaborados e ratificados por inúmeros países, sua efetiva proteção tem se constituído num difícil obstáculo a ser transposto.
PRINCÍPIO DA HUMANIDADE – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A partir da ideia de humanidade, traçada em linhas gerais no tópico anterior, decorre o Princípio da Humanidade, que supõe o reconhecimento de direitos comuns a todos os seres humanos[7], o quais devem ser reconhecidos, assegurados e efetivados pelos Estados, bem como pela comunidade internacional.
Segundo Pablo Lucas Verdú[8], o conceito de humanidade é o fundamento dos direitos humanos, os quais configuram um todo harmônico que, se violado, constitui-se num atentado contra a própria humanidade.
A humanidade é a morada da dignidade humana, que nela encontra sua essência. Seu caráter de universalidade pressupõe solidariedade e engloba sujeitos de diversas espécies, independente da cultura, religião, educação, costumes[9], etc., daí porque a necessidade de reconhecimento dos direitos e liberdades ao indivíduo frente ao Estado.
A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1791) proclamou os direitos individuais, enquanto que a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) consagrou os direitos a que todos os homens na face da Terra têm direito.
Reforça Verdú[10] que a ideia de humanidade é necessária para a existência dos direitos humanos, que a integram. E essa ideia de humanidade é imprescindível para impor a igualdade jurídica, a imparcialidade nos processos e o fortalecimento do direito internacional. A dignidade humana, por sua vez, é própria a todo ser humano enquanto membro da humanidade, o fundamento dos direitos humanos.
Para o autor[11], falar de direitos humanos é falar de direitos de natureza mais individualista, porquanto surgidos primeiramente com a Declaração Francesa, de cunho burguês, enquanto que os direitos da humanidade atingem a todos os povos e classes sociais, possuindo um caráter mais universalista, tendo por base a solidaderiedade e o amor.
O conceito jurídico-cristão do homem como um ser criado à imagem e semelhança de Deus, coloca os seres humanos num patamar de igualdade, e o gênero humano passa a se identificar com a humanidade.
Como frisado alhures, a ideia de humanidade aparece ligada à noção de dignidade humana, que é uma qualidade inseparável do ser humano, um valor que faz com que o homem respeite a condição de outro ser humano. São, pois, conceitos indissociáveis. Pondera Emine Eylem Aksoy[12] que uma ação indigna não é necessariamente uma ação inumana, mas apenas indigna.
A noção atual de dignidade humana pode ser compreendida como a síntese de um valor da humanidade e de uma qualidade essencial reconhecida a toda pessoa (Il découle donc de ce qui précède que la notion actuelle de dignité humaine se comprend comme la synthèse d’une valeur de l’Humanité et d’une qualité essentielle reconnue à toute personne). [13]
Podemos afirmar que o princípio da Humanidade abriga toda a universalidade dos seres humanos e todos os princípios previstos nos ordenamentos jurídicos, notadamente o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pilar das constituições contemporâneas.
3. TRÁFICO DE PESSOAS
Decorre dos princípios da Humanidade e da Dignidade da Pessoa Humana garantir que todo ser humano tenha direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, não se admitindo que ninguém seja mantido em escravidão ou servidão.
Pelos princípios da Humanidade e da Dignidade da Pessoa Humana também não se admite que qualquer ser humano seja submetido à tortura, a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.
Em todos os lugares do planeta, todo ser humano tem o direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei. É assegurado a todo ser humano o direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado.
É por atentar contra a vida e a liberdade de um ser humano, infligindo-lhe tratamento desumano ou degradante, inclusive mediante restrição ao direito de locomoção, negando-lhe o direito de ser reconhecido como pessoa, que não se admite que alguém seja mantido em escravidão ou servidão.
A escravidão e o tráfico de escravos, por ferirem a condição do ser humano enquanto tal, possuidor de direitos considerados inalienáveis, serão proibidos de todas as formas.
Por tais razões, grande tem sido a preocupação do direito internacional com o tráfico de pessoas, a nova forma de escravização e de escravidão praticada por pessoas, grupos e organizações criminosas, a nível transnacional.
O tráfico de seres humanos sempre existiu, desde as épocas mais remotas. O difícil é aceitar que esse tipo de crime continue existindo e de uma forma assustadoramente expansiva, bárbara, cruel, desumana.
O tráfico de seres humanos, nos moldes atuais, adquiriu uma nova feição, com diversas e sofisticadas formas de atuação e abrangência, a exigir uma maior preocupação por parte das entidades internacionais e também dos países exportadores e importadores de seres humanos coisificados, transformados em mera mercadoria.
Existem várias espécies de tráfico de pessoas, sendo as mais comuns aquelas destinadas à exploração sexual, ao trabalho escravo, ao comércio ilegal de órgãos e à servidão doméstica.
No presente trabalho, dada a amplitude da temática, a qual demandaria um profuso estudo, nos deteremos ao estudo do tráfico de pessoas, especialmente de mulheres para fins de exploração sexual, de natureza transnacional.
Preocupada com o aumento do tráfico de pessoas, a ONU passou a se deter ao estudo dessa criminalidade de características globalizadas, com o potencial de movimentar bilhões de dólares em todo o mundo, subjugando um considerável número de seres humanos à condição de escravos, submetidos a variadas e vis formas de exploração, numa afronta inconcebível aos princípios da Humanidade e da Dignidade da Pessoa Humana.
Segundo dados da OIT, do ano de 2005, o tráfico de seres humanos foi considerado a atividade mais lucrativa depois do tráfico de drogas e de armas, movimentando cerca de U$32 bilhões de dólares por ano, vitimizando algo em torno de 2,4 milhões de pessoas, das quais, 43% são para fins de exploração sexual. Cerca de 500 mil mulheres são traficadas anualmente para a Europa, tendo como países de destino a Espanha, Bélgica, Alemanha, Holanda, Itália, Portugal, Suíça, Noruega e Dinamarca. A maioria das mulheres traficadas são originárias do Leste Europeu, Filipinas, Tailândia, Gana, Nigéria, Marrocos, Brasil, Colômbia, Equador. [14] Essa modalidade criminosa guarda estreitas relações com máfias extremamente perigosas, a exemplo da YAKUSA, das TRÍADES CHINESAS, da MÁFIA RUSSA e Snake Heads.[15]
As mulheres traficadas entram nos países de destino de forma legal, muitas com aliciadas pelas propostas de emprego como babás, garçonetes, modelos, dançarinas. Ali chegando, seus passaportes lhes são retirados e sua liberdade é tolhida, ficando a mercê das determinações dos cafetões e mafiosos, encarregados de distribuir a “mercadoria” para os pontos necessários, dentre boates, casas de massagens, prostíbulos, onde são obrigadas a se prostituir.
As redes de favorecimento do mercado do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual são abrangentes, envolvendo aliciadores, proprietários de estabelecimentos, empresas legais ou ilegais no ramo de turismo, transporte, taxistas, entretenimento, pornografia, boates, hotéis, casas de massagens, saunas, prostíbulos, etc. Essa rede bem orquestrada dificulta a identificação dos criminosos e, por conseguinte, a instauração de processos judiciais e a condenação dos envolvidos.
Ao se deparar com o moderno e bem articulado tráfico de pessoas, a ONU observou a existência de diversos desafios, a saber: identificar e conceituar o tráfico de pessoas; identificar os traficantes e as vítimas; realizar estudos e estatísticas relacionadas a uma modalidade criminosa de complicada averiguação; mobilizar a comunidade internacional para o problema, estimulando-a à realização de acordo de cooperação, de reconhecimento do crime em suas fronteiras e adoção de políticas públicas destinadas à prevenção e à repressão.
Após intenso e árduo trabalho, a ONU elaborou o Protocolo Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, também conhecido como Protocolo de Palermo.
De acordo com o art. 3o. do Protocolo Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças[16], o tráfico de pessoas é caracterizado como sendo “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou outras formas de coerção, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra pessoa, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos;”
A amplitude desse conceito possibilita que os Estados-Membros das Nações Unidas que ratificaram o Protocolo de Palermo, tenham um norte para definir o tráfico de pessoas, criminalizando a conduta conforme suas respectivas legislações, ajustando-as à definição adotada pelo direito internacional.
O tráfico de pessoas é uma modalidade criminosa que nega ao ser humano traficado e explorado direitos tidos como inalienáveis, como inseparáveis da condição do próprio ser humano, coisificando-o e transformando-o em mercadoria, daí porque viola frontalmente o princípio da Humanidade e o da Dignidade da Pessoa Humana, justificando a preocupação do direito internacional em cuidar de tal assunto, mediante a adoção de medidas preventivas e repressivas por meio de organismos internacionais, como a ONU e países exportadores e importadores de seres humanos para fins de exploração.
A despeito de sua danosidade aos direitos mais elementares do ser humano, dentre a vida, a liberdade, a segurança, ao direito de locomoção, dentre outros, o tráfico de seres humanos ainda é tratado de forma tímida pelas legislações de diversos países, dificultando sobremaneira uma prevenção e uma repressão eficaz, notadamente por meio da punição dos autores e da proteção às vítimas.
A ausência de estatísticas seguras relacionadas a esse tipo de criminalidade – dificultada pela sua própria complexidade – denota a timidez com a qual o problema ainda é enfrentado.
3.1. TRÁFICO DE PESSOAS PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL
3.1.1. UMA VISÃO GLOBAL
O tráfico de pessoas para fins de exploração sexual pode decorrer de vários fatores, dentre os quais se sobressaem: a desigualdade socioeconômica, bem como a de gênero, raça e etnia, a ausência de políticas públicas nas áreas da educação, da saúde, a ausência de perspectivas de um futuro melhor, a pobreza, guerras civis e conflitos armados, emigração ilegal.
Esses fatores são elementos decisivos para a vulnerabilização das pessoas traficadas, notadamente para fins de exploração sexual.
Via de regra, é a falta de oportunidades no país de origem, associada ao sonho de Cinderela, que faz com que uma mulher aceite uma proposta de trabalho de um aliciador para ser babá, garçonete ou dançarina em uma boate num outro país, quando então, ao chegar ao local de destino, descobrirá que terá de se prostituir para pagar a viagem feita, sua estadia e alimentação, além de ter seus documentos retidos pelos traficantes e cafetões. Privada de liberdade, de dignidade, de identidade, a vítima se vê cada mais envolvida em um círculo criminoso do qual dificilmente sairá incólume. As vítimas escravizadas, em sua imensa maioria, são mulheres sem nome, sem rosto, sem registro perante as autoridades dos países onde são escravizadas, e por isso mesmo, dificilmente figurarão em estatísticas.
A mulher traficada é considerada mera mercadoria destinada a abastecer o lucrativo mercado do sexo, e nessa cadeia entre explorador-explorado-consumidor, o princípio da Humanidade é violado de modo inconcebível.
Pelo RELATÓRIO NACIONAL PESTRAF BRASIL[17], do ano de 2002, há dois tipos de mulheres aliciadas: a) a ingênua, que passa por dificuldades financeiras e alimenta o sonho de uma vida melhor em outro país, de trabalhar e até mesmo casar com um estrangeiro que lhe propiciará uma vida digna; b) a que tem “domínio da situação”, que tem conhecimento de que será explorada e, ainda assim, aceita os riscos de sua escolha para ganhar dinheiro.
Essas mulheres e adolescentes recrutadas para abastecer o mercado do sexo apresentam baixa escolaridade, possuem um histórico de alguma violência ou abuso sexual, são afrodescendentes, com idade entre 15 e 25 anos.[18]
O perfil do aliciador, aquele que realiza a cooptação da vítima para a rede criminosa do tráfico para fins de exploração sexual, por sua vez, mostra que a maioria é formada por homens (59%), muitos dos quais são estrangeiros de diversas nacionalidades, enquanto o percentual de mulheres responsáveis pelo aliciamento é de 43%.[19]
É considerado explorador desse mercado sexual criminoso aquele que estabelece relações de poder, tirando partido e proveito da vulnerabilidade social das vítimas, explorando-as através das redes de favorecimento do tráfico para fins sexuais e por meio do consumo dos serviços sexuais ofertados por essas redes, pelo que aqui se encaixam os aliciadores, os consumidores, os proprietários de estabelecimentos destinados ao comércio ilegal do sexo.[20]
O tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, segundo dados do ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME – UNODC, relatados no Global Report on Trafficking in Persons 2014[21], das vítimas do tráfico de pessoas detectadas no ano de 2011: 49% são mulheres, 18% homens, 12% meninos e 21% meninas.
De acordo com esse estudo, entre os anos de 2010 e 2012 foram identificadas vítimas de 152 países em 124 países ao redor do mundo.
Das diversas formas de tráfico de pessoas: para trabalhos forçados, tráfico de órgãos, por exemplo, o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual representa o percentual de 53%, segundo dados de 2011.
Ainda pelo Global Report, das vítimas do tráfico de pessoas detectadas na Europa e Ásia Central, 66% são exploradas sexualmente (dados de 2010-2012), na África, esse percentual chega a 55%, enquanto que nas Américas representa 48%, e Oeste e Sul da Ásia e Pacífico é 26%.
Outrossim, das vítimas do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, 79% são mulheres, e os homens representam apenas 8%. De cada três vítimas, uma é criança.[22]
No Brasil, o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres para fins de exploração sexual, vem crescendo de modo considerável. Nesse mercado, 40% das mulheres vitimadas são brasileiras, a maioria originária dos estados de Goiás, Minas Gerais e do Nordeste[23].
Pesquisas realizadas no Brasil mostram a existência de uma estreita relação entre a rota do tráfico e as regiões de maior desigualdade social. De acordo com o RELATÓRIO NACIONAL PESTRAF BRASIL, de dezembro de 2002, existe uma relação concreta entre as regiões mais pobres do país e a geografia das rotas de tráfico.
Ainda pelo RELATÓRIO PESTRAF BRASIL[24], as regiões Norte e Nordeste representavam 76% e 69%, respectivamente, das rotas de tráfico nacional e internacional de mulheres para fins de exploração sexual. Ao passo que as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, representavam 35%, 28% e 33%, respectivamente.
O Nordeste, onde 45% de sua população encontra-se em situação de pobreza, é também uma das rotas mais movimentadas devido ao extenso litoral, cujo fluxo de turismo é imenso, a existência de portos e aeroportos internacionais ligando ao continente europeu.[25] Afora isso, existe aqui uma relação direta entre o turismo sexual e o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual.
As tabelas abaixo explicam a geografia das rotas do tráfico nacional e internacional, bem como a relação entre o tráfico de pessoas e as desigualdades regionais e pobreza.
Tabela 1: Geografia das Rotas
TRÁFICO DE PESSOAS – PREVENÇÃO E PUNIÇÃO A NÍVEL INTERNACIONAL
Preocupada com a dimensão da criminalidade organizada a nível internacional, onde o tráfico de pessoas vem se mostrando como a sua mola mestra, no ano de 2000, a ONU realizou a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional (CONVENÇÃO DE PALERMO), a qual viria a ser complementada pelo Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças (PROTOCOLO DE PALERMO).
Por meio desse documento, busca-se um instrumento universal capaz de tratar de todos os aspectos relacionados ao tráfico de pessoas, principalmente de mulheres e crianças, dada sua inequívoca vulnerabilidade, além de uma ação eficaz para sua prevenção e combate.
O mais importante aspecto envolvendo o Protocolo de Palermo diz respeito ao objetivo de promover a cooperação entre os Estados-Partes, de forma a combater o tráfico de pessoas e proteger suas vítimas, em especial, as mulheres e crianças, assegurando-lhes assistência e proteção.
A ONU, por meio do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), tem como uma de suas finalidades implementar as convenções contra o crime organizado, a exemplo da Convenção de Palermo.
O UNODC é o organismo encarregado de estudar, pesquisar, obter dados, fazer estatísticas sobre o tráfico de pessoas a nível internacional, mediante cooperação com os Estados-Membros da ONU, estudando e identificando vítimas, traficantes, suspeitos, formas de operacionalização, realizando estimativas, avaliando tal modalidade criminosa em seu aspecto geográfico, analisando as legislações dos países em relação ao crime etc.
No Brasil, o UNODC tem ajudado o governo brasileiro a cumprir as obrigações assumidas quando da ratificação das Convenções da ONU, dentre as quais o Protocolo contra o Tráfico de Seres Humanos, no ano de 2003, por meio dos Decretos 5.015 e 5.016 de 12.03.2004, respectivamente.
Em cooperação técnica com o Ministério da Justiça, o UNODC vem ajudando no aperfeiçoamento dos mecanismos destinados ao combate ao tráfico de seres humanos, no treinamento de pessoal engajado nessa luta, em promoção de campanhas de conscientização.
Foi nesse contexto que no ano de 2006, elaborou-se a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Decreto 5.948 de 26.10.2006) e o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP) (Decreto 6.347 de 08.01.2008), mediante a articulação de diversos ministérios, de organismos internacionais, de sociedades não governamentais e da sociedade civil, a atuarem nos eixos da prevenção ao tráfico de pessoas, na atenção às vítimas, na repressão ao tráfico de pessoas e na responsabilização de seus autores.
TRÁFICO DE PESSOAS – PREVENÇÃO E PUNIÇÃO A NÍVEL NACIONAL
No Brasil, o tráfico de pessoas, em especial o de mulheres para fins de exploração sexual, vem aumentando de forma considerável e, além dos fatores comuns relacionados a essa espécie de criminalidade, podemos também acrescentar um que lhe é peculiar: o turismo sexual.
O turismo sexual é um fator incrementador do tráfico de mulheres. Muitos turistas estrangeiros desembarcam em terras brasileiras com o propósito específico de realizar programas sexuais com mulheres, adolescentes e até crianças, as quais se tornam alvos fáceis de aliciamento e agenciamento para posterior “exportação” como “mercadorias” do sexo.
O tráfico de mulheres encontra no Brasil um local pleno de facilidades para a consecução de seus objetivos, pelo que podemos citar: a desigualdade social, a corrupção de funcionários públicos, que favorecem a imigração e a emigração ilegal; a ausência de fiscalização; leis deficientes e a inoperância do sistema investigativo e judicial.
O Brasil sempre ratificou diversos instrumentos de proteção aos direitos humanos, embora sempre tenha tido uma enorme dificuldade em efetivá-los, tanto por questões de raízes culturais e sociais arcaicas, com resquícios da Casa Grande e Senzala, bem como em razão de uma legislação ineficaz, asseverada pela ausência de fiscalização por parte das autoridades competentes.
Mesmo assim, muitas ações relacionadas à prevenção e a repressão ao tráfico de pessoas vêm sendo adotadas, apesar dos óbices encontrados em investigar e punir tais criminosos.
A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Decreto 5.948 de 26.10.2006) estabelece um conjunto de diretrizes, princípios e ações a nortear o Poder Público brasileiro no enfrentamento ao tráfico de pessoas, baseando-se nos eixos da prevenção, da repressão, da responsabilização de seus autores e do atendimento à vítima.
O Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP) (Decreto 6.347 de 08.01.2008), traça as metas e as ações específicas para implementar, com vistas ao enfrentamento ao tráfico humano.
O Código Penal brasileiro tipifica como crime: promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro, com pena de reclusão de 3 a 8 anos (art. 231). Na mesma pena incorre aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la (§ 1o.).
O tráfico interno de pessoa para fins de exploração sexual encontra-se também contemplado pelo Código Penal e assim o define: (art. 231-A), Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual, com pena de 2 a 6 anos de reclusão. E pelo § 1o do mesmo dispositivo legal: Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar, vender ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la.
No Brasil, em que pese a legislação penal dispondo sobre a matéria, o número de denúncias relacionadas ao tráfico de pessoas é insignificante e muitos desconhecem por completo a existência desse tipo de crime.
O RELATÓRIO NACIONAL PESTRAF BRASIL[26], de dezembro de 2002, constatou que das 131 rotas internacionais identificadas, 120 estavam relacionadas ao tráfico de mulheres. Das 78 rotas interestaduais, 62 relacionam-se ao tráfico de adolescentes.
Conforme documentos apresentados pela organização não-governamental Fundação Helsinque de Direitos Humanos, 15% das mulheres que trabalham em cabarés, casas de prostituição, saunas e estabelecimentos similares em todo o mundo, são brasileiras. E no ano de 2000, cerca de 75 mil brasileiras se prostituíam em países da União Europeia.[27]
As mulheres “exportadas” para o abastecimento do mercado do sexo no exterior são enviadas para a Espanha, Holanda, Venezuela, Itália, Portugal, Suíça, Estados unidos e Alemanha.
CONCLUSÃO
O tráfico de pessoas em suas diversas modalidades, notadamente para fins de exploração sexual, é crime de natureza perversa, que viola os direitos mais elementares de suas vítimas enquanto seres humanos dotados de direitos fundamentais e inalienáveis.
Às mulheres vítimas do tráfico para fins de exploração sexual, transformadas em meras “mercadorias”, em meros objetos sexuais, coisificadas, destituídas de toda e qualquer dignidade, violentadas física, moral e psicologicamente, submetidas a toda a sorte de sofrimento, são subtraídos todos os direitos inalienáveis ao ser humano enquanto tal, enquanto ser integrante da humanidade, sujeito de inúmeros direitos, garantias e liberdades.
Traficar pessoas e reduzi-las à escravidão para qualquer fim é crime que fere e avilta sobremaneira o princípio da Humanidade, o qual abriga em sua essência não somente o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, mas vários direitos humanos dele decorrentes.
O tráfico de pessoas é modalidade criminosa de difícil investigação, prevenção e repressão, daí porque a imperiosa necessidade de se firmar uma união inquebrantável entre países e povos para o enfraquecimento de seu poder de atuação, de modo a que seja incutida a ideia em todos os seres humanos da necessidade de seu extermínio, para que os direitos à liberdade, à igualdade, à fraternidade e tantos outros, se tornem plenos.
Enfim, o tráfico de pessoas é uma dura realidade a ser reconhecida e enfrentada pelos países e pelo direito internacional, mediante a utilização de meios e instrumentos eficazes de prevenção e de repressão, de modo a garantir a efetivação do princípio da Humanidade.
A meta a ser alcançada deve ser a fruição da liberdade plena do ser humano, independentemente de gênero, raça, etnia, religião, e que não apenas o corpo, mas também o espírito possam ser livres, estabelecendo-se uma união fortalecida pelos laços da solidariedade e do amor, expressão máxima da humanidade, daquilo que nos torna seres humanos.
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