UMA CRIANÇA, UM ABORTO

Grecianny Cordeiro

Quando pensamos em criança, em infância, logo imaginamos sorrisos abertos, tagarelices e traquinices, perguntas indiscretas, brincadeiras de boneca e de carrinho, passear no parque e rolar pela grama, fadas e princesas, heróis enfrentando monstros ferozes, banhos de rio ou de piscina, correr de pés descalços, brigas com os irmãos, avós carinhosos fazendo as comidas preferidas dos netos para a visita dominical… essas memórias são para sempre e delas dependem um adulto bem resolvido e feliz.

Quando pensamos em criança, em infância, não queremos imaginar quartos escuros, becos sombrios, olhares maliciosos, toques lascivos, abusos sexuais cometidos por pai, padrasto e parentes, bonecas despedaçadas, carrinhos quebrados, pés descalços na lama, cuidar dos irmãos mais novos, agressividade, medo, vergonha, drogas, traumas… essas memórias são para sempre e delas dependem um ser humano com profundas marcas na alma, a impedi-lo de ser feliz e de viver em paz.

O caso da menina de apenas onze anos que engravidou após ser estuprada – não se sabe ainda se no ambiente familiar – e que teve de procurar a justiça para realizar o aborto diante da recusa da equipe médica a fazê-lo em razão do avançado tempo de gestação, chocou o país; menos pelo fato de uma criança ter sido abusada, mais pelo fato de a juíza encarregada do caso ter tentado convencer a criança a aguentar “só mais um pouquinho”, sem olvidar aqui a intervenção da promotora de justiça no mesmo sentido.

Os aspectos legais dispensam comentários. Muito se falou sobre o assunto e restou claro como a luz do dia, especialmente para qualquer ligo em matéria jurídica, que situações dessa natureza ensejam a realização do denominado aborto legal.

Os aspectos judiciais protagonizados pela magistrada e pela representante do Ministério Público, mostram não somente um acinte à legislação, à qual deveriam zelar pela sua efetiva aplicação, em face dos cargos que exercem, mas exibem uma total falta de bom senso dessas profissionais em lidar com uma situação tão delicada em que uma pessoa leiga saberia exatamente o que deveria ser feito sem qualquer hesitação.

Como tudo na vida, o bom senso se encaixa em qualquer lugar, principalmente na aplicação do Direito.

Contudo, certas coisas na vida, ainda motivadas pelo bom senso, não podem aguentar um pouquinho sequer, têm que ser logo.

A juíza foi promovida. A promotora, provavelmente. A menina deixou de ser menina.

Grecianny Carvalho Cordeiro

Promotora de Justiça

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